Que você viva em tempos interessantes
A bienal da incerteza, do ceticismo. O título mais insinua do que descreve. É um misto de voto irônico e maldição sincera forjado sobre um suposto provérbio chinês, que circula pelas redes transmitindo uma suposta tradição popular. “Que você viva em tempos interessantes” é o que o curador Ralph Rugoff deseja ao visitante da 58ª Bienal de Veneza.
Como qualidade do “tempo”, o adjetivo “interessante” pode indicar algo que requer atenção, como também algo que não se entende de todo, mais ou menos como se diz em português que uma mulher grávida está em estado “interessante”.
No tempo incerto insinuado pelo título, forças de atração e sentimentos de incompreensão são produzidos por um conjunto de obras de 79 artistas que se debruçam sobre a questão da informação. Em um mundo tão instável quanto o contemporâneo, informação é algo frequentemente relacionado a desinformação, ou seja, a inconsistência e mentira. Na abordagem dos artistas selecionados para a 58ª Bienal de Veneza, isso se expressa na confusão entre realidade e ficção, bem como no poder crescente que as informações falsas apresentam na conformação da realidade.
O efeito das fake newsé perceptível e até mensurável em vários contextos sociais e políticos, mas não é a objetividade dos dados que interessa à grande maioria dos artistas selecionados para a 58ª Bienal de Veneza. Pelo contrário: muitas das obras situam-se no limbo do ceticismo, paralisadas na constatação de que a informação pode desinformar e de que aquilo que parece (ou não parece) pode ser. Falam por si as obras de Jimmi Durhan, Stan Douglas, Jesse Darling, Martine Gutierrez, Hito Steyerl e Jon Rafman, para citar apenas alguns nomes.
Em relação tanto ao desconforto, à insegurança e ao catastrofismo evocados em 2015 pela curadoria do nigeriano Okwui Enwezor como ao decorativismo escapista de 2017, produzido pela francesa Christine Macel, a bienal do norte-americano Ralf Rugoff conduz o público à epokhé, ao estado que os filósofos céticos chamam de suspensão do juízo. Se informação (ou a desinformação) é fonte constante de incertezas ou ameaças, isso não gera nenhum incômodo no visitante da 58ª Bienal. Pelo contrário: a epokhéconduz à aceitação, a um estado de contemplação que nenhuma maldição pode abalar.
“Que você viva em tempos interessantes” é, assim, antes um convite do que uma praga na proposição de um curador que, longe da visão globalista e diversa de Enwezor e Macel, enfatiza uma produção jovem e predominantemente norte-americana. Em sua curadoria, grande parte dos artistas são nativos, residentes ou têm presença constante nos Estados Unidos, e quase todos transitam no circuito mercadológico de Berlim e Londres, onde Rugoff atua há anos como diretor da prestigiosa Hayward Gallery.
A epokhédos céticos acomoda-se perfeitamente à crítica plácida de fácil aceitação no mercado, impondo-se até mesmo a artistas mais assertivos como o sul-africano Zanele Muholi, o estadunidense Arthur Jaffa, o tailandês Korakrit Arunanondchai e a nigeriana Njideka Akunyili Crosby.
A montagem da 58ª Bienal favorece isso. Há tempos, uma Bienal de Veneza não recebia uma expografia tão bem acabada e favorável à apreciação das obras e das relações propostas entre elas, invariavelmente formais.
O edifício do Arsenale está revestido por lambris de madeira crua que definem o espaço a partir de um eixo central, escandido numa sequência de seções em que as obras são dispostas em oposição frontal ou em flancos. No Pavilhão Central dos Giardini, mais adaptado do que nunca à lógica do cubo branco, a montagem propõe antes uma sucessão de solos ou exposições de duplas organizadas por afinidade formal do que um discurso construído ao longo do deslocamento no espaço. Tudo isso muito bem iluminado e identificado, como poucas vezes se viu em uma bienal em Veneza. Não fosse a atmosfera do lugar, impregnada de história e maresia, o visitante poderia se julgar em uma feira de arte.
Nesta visão cética – e tépida – dos efeitos possíveis da informação/ desinformação no mundo atual, o discurso da curadoria se constrói a partir do exórdio à ataraxía, a tranquilidade da alma. Na entrada do Pavilhão Central, Antoine Catala recomenda ao visitante: “Não se preocupe”, “Já passou”, “Está tudo bem”, “Relaxe”. Fica a sugestão: devemos encarar o momento como se assistíssimos a uma comédia de Shakespeare, afinal não há por que fazer muito barulho por nada. Não se deixe abalar quando entrar no Arsenale e se deparar de cara com a monumental Double Elvis, essa “glorificação da humanidade mais abjeta”, no dizer do artista George Condo, estrela maior da cena artística norte-americana. A vida não é uma tragédia de Shakespeare: embora pareça, pode não haver nada de podre no reino da Dinamarca – e talvez em reino nenhum. Tempos interessantes, por certo.