Krajcberg, ativismo e ecoarte

Frans Krajcberg com uma de suas obras na exposição Natura, realizada pelo MAM-SP na Oca em 2008

O ano era 1967. O MAM Rio acabava de abrir as portas de seu edifício principal. Uma exposição organizada por artistas e críticos iria se tornar um marco da contemporaneidade na arte brasileira. Hélio Oiticica, um dos organizadores, destacava o caráter coletivo, participativo e multissensorial das obras, assim como o posicionamento dos artistas em relações a problemas políticos e sociais.

Realizada durante a ditadura, a exposição Nova objetividade brasileira colocou o engajamento na agenda dos artistas. Com a redemocratização, em meados dos anos 1980, a arte engajada foi tragada pela onda formalista da pintura renascente, e agora ela está de volta, impulsionada pelo fortalecimento das pautas identitárias.

Poucos artistas brasileiros foram tão engajados quanto Frans Krajcberg. Menos numerosos foram os defensores de causas não percebidas como tais, como a causa ambiental. Krajcberg foi um artista celebrado em vários momentos, mas o surgimento de novas mídias e tendências obscureceu sua obra. O interesse por ela vem sendo renovado à medida que as discussões sobre o colapso ambiental se intensificam. O resgate da obra passa pela valorização dos atributos materiais e conceituais de sua produção, mas não pelo ativismo do artista, que é efetivamente o que lhe imprime o caráter contemporâneo. No entanto, o ativismo de Krajcberg não foi nem apreciado pela crítica coeva, nem analisado pela atual. É preciso pensá-lo hoje, à luz da ecoarte.

Sabe-se pouco sobre Frans Krajcberg. Consta que recebeu formação em desenho, pintura e engenharia – qual? Como outros artistas jovens no pós-guerra, enveredou pelo abstracionismo informal, especialmente pela vertente matérica, que é considerada a determinante estética de toda sua obra.

Ele foi uma figura isolada e sombria, apesar de o extenso currículo de exposições insinuar o contrário. Participou de várias bienais de São Paulo nas décadas de 1950 e 60, apresentando pinturas e gravuras. Mudou de cidade, estado e país algumas vezes, até se estabelecer em Nova Viçosa (BA), em 1972. A errância e a marginalidade são intrínsecas à obra, cuja única constante é a natureza.

Seu entendimento da natureza era quase filosófico. Para Krajcberg, natureza era vida, e esta, a causa e condição do viver. Talvez isso explique por que, recém-chegado ao Brasil, em 1949, ele tenha se horrorizado ao ver uma queimada. O choque o levou à denúncia, mas a voz dos artistas é inaudível quando comunica fatos que contrariam hábitos arraigados ou a lógica do capital. Historicamente, queimar a mata era uma prática normalizada no Brasil, mas no final dos anos 1940 essa prática era vista como exigência do progresso.

Ao longo de décadas, em viagens por Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso e Amazonas, Krajcberg coletou um vasto repertório de tragédias físicas e humanas causadas pelo desmatamento. Os registros gráfico e fotográfico, a denúncia de ações criminosas e a transformação de vestígios em esculturas e relevos se integraram em processos que o artista sistematizou nos anos 1970.

Sua poética se consolidou durante a ditadura militar. Externamente, o regime opunha-se à agenda de regulação ambiental proposta na Conferência de Estocolmo. Internamente, impunha um modelo de desenvolvimento baseado no extrativismo e na agroindústria, que intervinham de maneira inescrupulosa em diversos ecossistemas, causando efeitos terríveis nas comunidades indígenas. Doença e desigualdade cresceram em razão direta do desmatamento sem que a sociedade brasileira soubesse, já que nada era noticiado nos jornais sob censura. Os crimes eram conhecidos somente por executores, vítimas e testemunhas. Krajcberg sabia que a destruição do patrimônio natural era um projeto político. Seu legado artístico foi uma declaração de resistência.

A arte de Krajcberg é coeva ao pensamento ecológico de André Gorz, mas é realizada de maneira independente do debate europeu. Ela era produzida em contextos de devastação, diversamente da arte ecológica europeia do período, que era dirigida por uma agenda. Nos anos 1970, a ecologia atraiu artistas como Hundertwasser, um dos primeiros a incorporar premissas de sustentabilidade na plástica arquitetônica, e Josef Beuys, que deu ao ambientalismo uma dimensão estética manifesta em ações coletivas que repercutem até hoje.

Entretanto, o Brasil dos anos 1970 e 80 não compreendia o ativismo ambiental. Ecologia não era uma questão, muito menos um campo de atuação ou militância. O fato de Krajcberg ter sido premiado na bienal de 1977 se deve antes ao reconhecimento do valor estético e histórico de sua produção do que à luta pela preservação da natureza. Embora o ativismo seja indissociável de sua prática artística, a crítica não o considerou em sua essência, o que explica o esquecimento de sua obra nas décadas subsequentes. Embora a Eco-92 tenha tirado o Brasil do limbo ambiental e o colocado na liderança do debate global, isso não repercutiu nem no meio cultural nem no meio artístico. Temas discutidos no Acordo de Paris reverberaram timidamente na 32ª Bienal, em 2016, onde obras de Krajcberg foram apresentadas como exemplo de arte produzida em um campo não conceituado. O meio artístico de hoje patina sobre o pensamento ecológico e ignora a agenda ambiental. Não surpreende que Krajcberg tenha sido reduzido a mera referência histórica.

A recepção de Krajcberg no exterior foi diferente. Na Europa, onde o debate ecológico se propagou em vários setores, a obra de Krajcberg vicejou graças ao apoio de Pierre Restany, crítico ligado ao novo realismo, um dos movimentos mais relevantes no pós-guerra. Restany escreveu diversos artigos relacionando arte e ecologia depois de viajar pela Amazônia com Krajcberg, Sepp Baendereck e André Pallush em 1978. É dele a redação do Manifesto do rio Negro em defesa do “naturalismo integral”, que se apresenta “como uma opinião aberta, um fio condutor no caos atual da arte”. Seu ambicioso programa artístico “ultrapassa de longe as perspectivas ecológicas atualmente balbuciantes” e visa à “planetarização da consciência”.

Para Krajcberg, a arte é ação, é meio, não fim. Esse meio envolve pesquisa de pigmentos naturais e experimentos com matéria orgânica calcinada de que resultam esculturas que, além de arte, são evidências de crimes contra diversas formas de vida. Em 2008, por ocasião da primeira exposição panorâmica do artista no Brasil, o poeta Thiago de Mello descreveu essa potência transformadora como um recado da acapurana: “Diz a ele [Krajcberg] que eu vi o milagre. Vi a rosa rubra que ele fez nascer do ronco em brasa da minha amiga de infância que morreu queimada”.

A filosofia pensa a correlação entre ética e estética há séculos, mas os artistas começaram a cruzar a fronteira entre vida e arte há pouco mais de cinquenta anos. Aliás, o fim dessa fronteira é celebrado como um marcador da contemporaneidade. Considerando o caso Krajcberg pelo viés da nova objetividade, o marcador do contemporâneo na arte brasileira, ele seria um visionário cuja arte apontava para as consequências futuras de ações que conformavam – e ainda conformam – um dos aspectos mais trágicos da realidade presente. Seria porque situar a arte de Krajcberg no contexto da arte contemporânea implica admitir o ativismo ambiental como expressão estética em um campo de investigação artística totalmente novo.

A ecoarte pressupõe integração à natureza e ação regenerativa dirigidas por princípios sustentáveis. No limite, a ecoarte levaria ao fim da representação e, portanto, ao fim da arte. Frans Krajcberg talvez tenha sido um dos primeiros ecoartistas no mundo. Thiago de Mello disse que “ele não gosta que lhe venham de louvores”, mas compreender o visionarismo das suas proposições é o primeiro passo rumo à virada que a arte precisa dar.

 Publicado originalmente em Móbile #27, revista do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, setembro de 2024. Acesse a edição aqui.

Referências

Baedereck, S; Krajcberg, F.; & Restany, P. (1978). Manifesto do rio Negro – Manifesto do naturalismo integral. Disponível em https://pt.espacekrajcberg.fr/le-manifesto-do-rio-negro (acesso em 08/02/2024)

Duarte, Regina Horta (2015). “‘Turn to pollute’: Poluição atmosférica e modelo de desenvolvimentos no ‘milagre’ brasileiro (1967-1973)”, em revista Tempo, vol. 21, n. 37. Disponível em https://www.scielo.br/j/tem/a/CMYybBMgXfHcZNr6LWVCGmP/?format=pdf  (acesso em 08/02/2024)

Krajcberg, F. (2000). Revolta. Texto de Frederico Moraes. Rio de Janeiro, GB Arte

Natura (2008), catálogo de exposição. São Paulo, MAM

Oiticica, H. (2006). “Esquema geral da nova objetividade” [1967], em Ferreira, G.; & Cotrin, C. (orgs.). Escritos de artistas 60/ 70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6878607/mod_resource/content/1/Oiticica_Helio_1967_2006_Esquema_geral_da_Nova_Objetividade.pdf (acesso em 08/02/2024)