Cildo Meireles e o bicho-papão

Em cartaz no Sesc Pompeia até 2 de fevereiro, Entrevendo é a primeira exposição antológica de Cildo Meireles em anos. Que maravilha encontrar tanta coisa boa no mesmo lugar. O trabalho do Cildo faz bem ao corpo, à alma e à mente. Pode ir despreocupado: o bicho-pão que mora lá não engole gente.

Tenho uma vaga lembrança da última grande exposição de Cildo Meireles no Brasil, em 2000, no MAM São Paulo e no MAM Rio. Foi nela que tive primeiro contato com Missão/ Missões (Como construir catedrais), uma obra que me impressionou muito e segue como uma das minhas favoritas do artista. Quando soube que o Sesc Pompeia estava produzindo uma antológica com 150 obras do Cildo, fiquei numa alegria enorme. Era hora de rever trabalhos que vi dispersos em várias instituições e de ver outros que eu só conhecia por nome, como Entrevendo, concebido em 1970 mas executado pela primeira vez em 1994, que dá título à exposição organizada pelo Sesc com curadoria Júlia Rebouças e Diego Matos.

O artista plástico Cildo Meireles e a obra Entrevendo (Foto: Wikimedia, Matías Rossi, MACBA, 2016).

Montar uma exposição no Sesc Pompeia é um desafio. A área de convivência projetada por Lina Bo Bardi é um espaço antimuseológico. Ali está a memória da fábrica desativada, um espelho d’água e uma construção de concreto usada como biblioteca, sala de recreação e qualquer outra coisa que se inventar. Centenas, talvez milhares de pessoas circulam nesse ambiente todos os dias. Mas mesmo com tanto movimento, quase ninguém percebe a presença do bicho-papão engolidor de exposições.

Há quem tenha expulsado o bicho-papão, como Jochen Voltz, que criou salas de museu na exposição Terra comunal, dedicada à obra de Marina Abramovic em 2015. O preço de sua decisão foi anular a potência do local, tanto espacial como humana. Há quem tenha feito um trato com o bicho-papão, como Tania Rivera em Lugares do delírio, realizada em 2018 com 160 obras que se integraram perfeitamente às atividades dos usuários. A curadoria de Entrevendo escolheu a terceira via: encarar o bicho papão.

O público de Entrevendo se mistura na horda de gente que está na fila do almoço, jogando de xadrez ou mergulhando numa piscina de bolinhas. É um conjunto ímpar de eventos proporcionados por esse ambiente, e só por ele, um sonho para o curador de arte que deseja fazer do espaço expositivo um espaço integrativo. Mas como desejar não é conseguir, Entrevendo ficou vulnerável à astúcia do bicho-papão, que engoliu grande parte dos trabalhos dispostos nas paredes que delimitam essa área gigantesca.

O que se vê, além de Entrevendo? Olvido (1987-9), Eureka/ Blidhotland (1970-5), Missão/ Missões (1987), Amerikkka (1991/ 2013), e Fio (1990). O volume é o denominador comum dessas obras, que se impõem no espaço. Já os trabalhos sonoros, os projetos da série Arte física (1969) e os de Malhas da liberdade (1976-7), bem como os três Condensados (1973) e até a instalação Antes (1977/ 2003) foram parar na barriga do bicho-papão.

Missão/Missões (Como construir catedrais), 1987/2019

920.000 moedas, lajotas em pedra, 900 hóstias de comunhão, estrutura de metal, 2.300 ossos, tule preto. Coleção do Artista. Foto: Magnólia Costa

O bicho-papão também é engolidor de relações. O texto de apresentação da exposição, apenas entrevisto num espaço tão movimentado, não explicita as relações entre os trabalhos expostos, mas enfatiza conceitos subjacentes à obra de Cildo Meireles, que são referidos em textos curtos dispostos nas paredes ao longo da exposição. Um visitante com boa memória, espírito investigativo e decidido a ver a exposição com o olhar proposto pela curadoria tem uma tarefa árdua pela frente.

Como as obras volumosas não são vulneráveis ao bicho-papão, as lacunas se evidenciam. É notável a ausência do que poderia estar presente mas não está. Num momento crítico como o que atravessamos no Brasil e no mundo, e que torna esta exposição tão necessária, por que não vemos ali Ocasião (1974/ 2004), Babel (2001) ou Abajur (1997/2010)?

Mas nem todas as obras correm perigo. Entrevendo também ocupa o espaço do galpão do Sesc Pompeia, transformado em um asseado e silencioso cubo branco. Aí está a impressionante produção gráfica de Cildo Meireles, alguns de seus objetos mais poéticos, a instalação Volátil (1980), e vários trabalhos da série Espaços virtuais: Cantos (1967-8), apresentados em reedições de 2008 e 2013.

Nesse espaço museificado, a potência das obras é restaurada. Os frágeis Conhecer pode ser destruir e A menor distância entre dois pontos é uma curva (ambos de 1976), que seriam vítimas fáceis do bicho-papão, felizmente estão a salvo. Seu poder cresce neste ambiente neutro e bem iluminado.

Amerikkka, 1991/2013
Estrutura de metal, madeira, 17.500 ovos de madeira pintada com laca de poliuretano, 32.700 balas de arma de fogo. Coleção artista e Galerie Lelong & Co. Foto: Magnólia Costa.

Em uma exposição que requer do visitante firmeza de propósito e atitude resoluta, teria sido uma boa estratégia agrupar em um espaço neutralizado as obras de pequeno formato e de caráter projetual que, aliás, são parte considerável das 150 que integram Entrevendo. Essa estratégia por certo não teria mitigado a ausência de trabalhos seminais como Árvore do dinheiro (1969) e Inserção em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970), mas teria ajudado o visitante a compreender as relações entre as obras, algo em que os textos dispersos nos espaços expositivos não foram pródigos em fazer. Da mesma forma, teria sido uma atitude generosa aproximar obras com evidente afinidade conceitual, como os trabalhos das séries Ocupações (1968-9) e Cantos.

Claro está que o Sesc não quis que Entrevendo fosse uma exposição retrospectiva. Pena. Nenhuma outra instituição brasileira poderia fazer isso agora ou nos próximos anos. O fato de Cildo estar ativo independe do nosso desejo de conhecer o que ele vem fazendo há mais de cinquenta anos e haverá de fazer por muito tempo ainda. Cildo Meireles é um gigante. Mais do que uma retrospectiva, ele merece uma prospectiva. Mostre sua obra integralmente. Que ela engula o bicho-papão.

Entrevendo - Cildo Meireles

Onde: área de convivência, galpão e deck do Sesc Pompeia, rua Clélia, 93, Água Branca, São Paulo, SP.

Abaixo, registros de nossa visita à exposição.

 

Missão/Missões (Como construir catedrais), 1987/2019

920.000 moedas, lajotas em pedra, 900 hóstias de comunhão, estrutura de metal, 2.300 ossos, tule preto. Coleção do Artista. Foto: Magnólia Costa.

 

Amerikkka, 1991/2013
Estrutura de metal, madeira, 17.500 ovos de madeira pintada com laca de poliuretano, 32.700 balas de arma de fogo. Coleção artista e Galerie Lelong & Co. Foto: Magnólia Costa.

 

Antes, 1977/2003
Estrutura e chapa de aço (piso, escada, patamar, guarda-copo, cadeira e mesa). Cortesia Galeria Luisa Strina. Foto: Magnólia Costa.