O que não é floresta é prisão política

Uma das exposições mais potentes que visitei nos últimos anos não está em um museu, nem em nenhuma instituição cultural. Ela não recebeu nenhum tipo de financiamento, nem tem propósito comercial. Não é milagre: é só desejo de construir junto.

Numa travessa da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo, há um longo muro grafitado onde se lê “Quem não luta tá morto”. É o lema das pessoas que moram no edifício atrás desse muro, conhecido como Ocupação 9 de Julho. Como outras na região, essa ocupação é organizada pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), liderado por Carmen Silva, baiana de 59 anos autora de uma proposta audaciosa para minimizar o déficit de moradia para a população de baixa renda. Um dia eu vou escrever um artigo sobre o modelo da Ocupação, que é um dos projetos apresentados na Bienal de Arquitetura de Chicago, em cartaz até 5 de janeiro.

Sob a liderança de Carmen, prédios abandonados em São Paulo há anos são ocupados de maneira extremamente ordenada, observando rigorosamente os critérios necessários à readequação dos espaços, para que os moradores possam viver com segurança e qualidade num ambiente de cooperação mútua.

Sou frequentadora assídua dos almoços promovidos pela Cozinha da Ocupação; atuo neles como voluntária. Ali me sinto em casa, cercada de pessoas bacanas, boa comida, boa música, um clima muito amoroso. A arte é parte da alegria, uma arte que muitas vezes é produzida lá mesmo, nos vários cursos e oficinas organizados por moradores e artistas que, como eu, são fãs absolutos da comunidade Ocupa.

Há obras por todo lado, dentro e fora do prédio. Mas é no terceiro subsolo que a coisa ganha intensidade. É lá que funciona a Galeria Reocupa.

Desde setembro, a Reocupa abriga O que não é floresta é prisão política, exposição que até o momento conta com obras de sessenta artistas. A cada semana a exposição é ativada por um artista convidado e tudo continua em processo, sem data para terminar. O motivo é simples: a floresta sofre ameaça constante e a prisão é uma ameaça eminente para muita, muita gente. A coletividade é a essência da exposição. Tudo é coletivo e autofinanciado: concepção, realização, programação, educação. Há dois pontos de partida: a floresta e a prisão. Reproduzo o texto que é distribuído no espaço expositivo.

“A floresta, a terra-floresta, para os Yanomami a pele da terra que é fluida, sem fronteiras. A mãe-terra e seus auto-ajustamentos em função da necessidade de produzir e sustentar a vida. Um sistema que não tem lei e é cooperativo, que não depreda recursos e garante sua continuidade. Até hoje parecem ser os povos originários os únicos seres humanos que sabem compor e cooperar onde há floresta. E la seria, então, um ente que pode se contrapor às tantas formas de dominação [...].”

“A prisão. Impossível não pensar no Brasil desde 2014 como uma imensa e contígua prisão. ‘Por que falo em pequena prisão? Exatamente porque, iludidos com uma sociedade autoproclamada livre, vivemos na verdade numa imensa, cada vez maior, prisão [...]’, escreveu Igor Mendes em seu relato do cárcere [...] Ele que, como Rafael Braga, Preta Ferreira, Carmen Silva tantas e tantos outros sofrem as perseguições dos aparelhos do Estado por liberarem o caminho rumo à liberdade e para a construção do comum.”

Bem antes dos incêndios na Amazônia e dos mandados de prisão de líderes dos movimentos pró-moradia, o coletivo de artistas já trabalhava sobre esses temas na construção da exposição, entendendo floresta como um organismo que funciona de forma colaborativa e prisão como restrição a todas as formas de expressão. A abertura da exposição coincidiu com as queimadas na flore sta e o ápice da luta judicial para a concessão do habeas corpus de Carmen Silva e de sua filha Preta, que ficou detida em prisão preventiva por 109 dias.


Cada obra exposta na Reocupa tem força própria, que é potencializada pelo conjunto. O espírito da floresta está presente, nutrindo um todo conceitualmente coeso e generoso com a individualidade dos elementos. Esta é uma floresta verdejante, cheia de vida, capaz de derrubar prisões que encarceram corpos em luta pelo direito à vida. Esta floresta não arde em chamas: resiste e cresce.

Nada mais coerente do que instalar a Reocupa no subsolo de um prédio que está abandonado há vinte anos, desde que o INSS o desocupou. A Reocupa está no local que um dia foi um hall sofisticado com pé direito duplo, escadaria ampla e revestimento de mármore, a entrada monumental de um edifício público na avenida 9 de Julho, a principal ligação do centro de São Paulo com a Zona Sul durante década s. Esse espaço vem se degradando há anos. Ele é evidência das distorções dos gastos públicos: fortunas investidas em patrimônio condenado à degradação e investimento ínfimo em capital humano. Graças a esta ação do MSTC, a sociedade utiliza racionalmente recursos materiais que lhe pertencem, recupera e dá sentido a algo destinado a ruir antes mesmo de existir.

O que não é floresta é prisão política é uma exposição imprescindível. A vitalidade do coletivo em toda sua potência. Juntos somos. Quem não luta está morto.


Ocupação 9 de Julho
Visitas de quinta a domingo, das 14:00 às 20:00
Em cartaz por tempo indeterminado
Programação semanal nas redes sociais

Abaixo, galeria de imagens da Ocupação 9 de Julho, com registros de Flávio Paes para o nosso blog.