Melancolia: o enigma de Kiefer e Dürer
Anselm Kiefer é uma estrela da arte contemporânea mundial. Iniciou sua produção há cinquenta anos com registros fotográficos de ações que remetiam à memória da Alemanha, questionando se a obsessão nazista pelos mitos seria um traço identitário dos povos germânicos. A arte de Kiefer é feita de pinturas, esculturas e instalações sobre traumas irreconciliáveis, lamentações coletivas e evocações do hermetismo espiritual de várias culturas. A melancolia é intrínseca à sua obra, bem como a sua transformação em uma espécie de ascese espiritual.
Várias obras de Kiefer têm a palavra “melancolia” no título. Uma delas, a mais antiga, é Der Rhein (Melancholia), de 1982-2013, um híbrido de xilo e pintura de grandes dimensões onde se vê a estrutura de um poliedro, figura recorrente nas Melancholia que Kiefer fez depois. Esse poliedro é um dos elementos mais intrigantes da gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer.
Melencolia I é um mistério. Essa gravura é objeto de especulações há séculos. Iconografistas célebres como Warburg, Saxl e Panofsky tinham ideia fixa por ela. É impossível saber quanta gente tentou decifrar os sentidos ocultos de Melencolia I. Não sei se Kiefer tentou, mas uma coisa é certa: o nome dele está no rol dos aficionados pelo mistério dessa gravura.
Meu nome não está na lista dos intérpretes da Melencolia I, mas é fato que essa gravura sempre instigou o meu interesse. Os textos que li a respeito dela se concentram na análise do simbolismo dos elementos representados, em particular o poliedro, o quadrado mágico, o anjo e o cão. Apesar de os autores divergirem sobre o significado dos símbolos, eles são unânimes em associar melancolia à influência do planeta Saturno, ou Cronos, que era como os gregos chamavam o Tempo. Essa associação é sugerida pela abordagem neoplatônica da melancolia pelo filósofo Marsilio Ficino, cujo pensamento foi bastante propagado fora de sua Florença natal no início do XVI, quando Dürer gravou a imagem da enigmática Melencolia I.
Esse período histórico que se convencionou chamar de Renascimento é pródigo em textos que versam sobre o desequilíbrio da mente. A Nau dos loucos de Bosch é um subproduto dessa literatura, como analisei num artigo recente. Entre os autores renascentistas, temos Robert Burton, Henri More, Jacques Ferrand, o alquimista Paracelso e o ocultista alemão Cornelius Agrippa, que provavelmente é o mais familiar para Dürer.
Para esses autores, melancolia se opõe a entusiasmo assim como hoje, no século XXI, opomos depressão e euforia. Tanto no século XV como agora, esses sentimentos opostos se relacionam com uma certa percepção do tempo. Na melancolia, o tempo parece não passar, o que intensifica a angústia da espera por algum desfecho, qualquer que seja. Na euforia, o tempo é percebido como insuficiente para que o desejo se realize de maneira imediata. Ambos se originam do mesmo sentimento, tão conhecido e infelizmente cada vez mais frequente no mundo que vivemos: a ansiedade.
Nos meus tempos de faculdade, a professora Marilena Chauí costumava falar sobre afetos e afecções em aulas memoráveis sobre a ética de Espinosa. Com ela aprendi que a melancolia e o entusiasmo nem sempre foram considerados doenças que deveriam ser medicadas. Aprendi também que o entusiasmo – que Platão chamara de manía, ou furor – produzia ébrios, tolos e lunáticos, e que a melancolia não era apenas um sentimento paralisante, mas um convite a um exercício corporal e espiritual que envolvia racionalidade, humildade e temperança. Aceitar esse convite era como vacinar-se contra a angústia causada pela própria melancolia.
No volume I do monumental Nervura do real (1999), em que Marilena demonstra que a aceitação das leis naturais é condição da verdadeira liberdade dos seres, Melencolia I é mencionada como anúncio dos antídotos a serem consumidos em caso de intoxicação melancólica, antídotos que Dürer explicitou em outra gravura de 1514, São Jerônimo em seu estúdio. É pena que Marilena não tenha desenvolvido o assunto. De todo modo, nas reflexões que fiz a partir do que ela propôs, me pareceu que a diferença entre o antídoto anunciado e o explicitado está na relação entre as personagens representadas e os objetos que as circundam em cada gravura. Melencolia I mostra uma figura inerte e aborrecida em meio a objetos que deveriam instigar sua atenção, ao passo que Jerônimo apresenta uma figura ativa, concentrada em realizar uma única tarefa.
Vivemos em tempos melancólicos. A causa desse sentimento é conhecida e comum a toda a humanidade. Nossa angústia já não precisa ser expressa por meio de símbolos como o poliedro de Dürer, que Kiefer associou tanto a um avião-caça – em uma obra de 1990, que pode exprimir o seu ceticismo em relação ao fim da Guerra Fria – como a uma explosão apocalíptica. O fim do mundo também é evocado no filme Melancolia (2011), de Lars von Trier, em que a angústia crescente das personagens as paralisa por completo antes da inevitável colisão do planeta Melancolia com a Terra. Note-se que, em Melencolia I, Dürer alude a uma ameaça vinda do espaço, figurada como um corpo celeste que emerge do fundo da cena.
A causa da melancolia contemporânea não é diferente da acometeu as pessoas há quinhentos ou mil anos, ou sempre: o medo da morte, a frustração de ver os projetos interrompidos, a repressão de desejos básicos, o prejuízo material, o encontro com a miséria. Os efeitos disso no indivíduo são um mistério tão grande quanto a Melencolia I de Dürer e as melancolias estetizadas de Kiefer e Trier.
Diante da paralisia, por que não tentar os antídotos sugeridos pelos filósofos?
Fico com o sublime Descartes, que tanto admiro. No livro As paixões da alma (1649), ele propõe buscar o equilíbrio do corpo pela dieta frugal – sigo confiante de que vou chegar lá. Ele diz que é preciso aceitar as imposições da natureza – faço isso há muito tempo – e abandonar o desejo de prestígio, o “delírio de singularidade” – estou longe disso, infelizmente. Por fim, Descartes recomenda a compostura mental, para que as faculdades racionais saibam o que aceitar e o que rejeitar, em vez de se deixar levar pela fantasia. É nisto que eu invisto.