Platão e a nau dos loucos
Um barco abarrotado de gente é uma imagem mental que pode surgir em vários contextos. Imagino os primeiros habitantes das Américas chegando em balsas há mais de cem mil anos – sim, apoio a tese da professora Niède Guidon – exatamente como vejo no jornal botes apinhados de refugiados desembarcando em praias europeias. Embora separadas por um grande lapso de tempo, essas imagens correspondem a ações motivadas pela sobrevivência. E quando se trata de sobreviver, todo mundo está por conta própria, porém no mesmo barco, que navega rumo a um destino desejado, mas incerto.
A imagem de um barco cheio de gente cortando o mar sem rumo definido é uma das (poucas) alegorias que Platão evoca em A república, o longo diálogo em que ele apresenta a utopia da sociedade ideal. No livro VI de A república, mais exatamente na passagem que vai de 488a até 489e, Platão fala de uma embarcação em que o capitão é forte, mas vê e ouve mal, e não domina a arte de navegar. Os marinheiros são igualmente ignorantes, mas mesmo assim disputam o controle do leme. Enquanto isso, o barco fica à deriva. Na alegoria de Platão, o barco é símile do Estado e, nele, o capitão representa o dono do navio, que é o povo – não custa lembrar que a Atenas de Platão era uma democracia. Dada a incapacidade do capitão, os marujos brigam pelo comando do barco que, para infortúnio dos navegantes, pode colidir e naufragar.
Não se deve entender a alegoria da nau desgovernada como uma apologia ao Estado democrático, longe disso. Platão defende a ideia de uma sociedade estratificada em que os governantes são filósofos, pessoas educadas desde a infância para dirigir suas escolhas pela razão, na busca desinteressada do bem comum. Para Platão, governar é para pessoas altamente capacitadas e imbuídas do conceito de justiça. Não à toa, seu modelo de sociedade é uma utopia, algo irrealizável em qualquer tempo e lugar.
A utopia platônica foi revisitada várias vezes ao longo da história. A exemplo de Platão, filósofos como Thomas More ou Campanella propuseram utopias, e foram literalmente mortos por isso. No século XX, interpretações distorcidas do pensamento platônico inspiraram o autoritarismo político em ambos os extremos do espectro ideológico-político.
Platão é um autor muito estudado nos séculos XV e XVI, período que corresponde às grandes navegações e à descoberta europeia dos chamados “novos mundos”. Sebastian Brant, um intelectual de prestígio que viveu em Estrasburgo, resgatou a alegoria da nau desgovernada em um poema intitulado Das Narrenschiff, ou a Nau dos loucos, publicado pela primeira vez em 1494, em alemão, e amplamente divulgado em traduções para o latim e o inglês ao longo do século XVI.
A partir de Brant, o tema da loucura – da tolice ou desrazão, como se queira – se torna recorrente no Norte da Europa nesse momento que precede a Reforma protestante. Um dos textos mais conhecidos é o Elogio da loucura, uma sátira às sociedades cultivadas na crendice e na superstição escrita por Erasmo de Roterdã em 1508, durante uma estadia em Londres na companhia de Thomas More.
No poema de Brant, os loucos são fiéis seguidores de são Grobian, um santo fictício protetor do vulgo, que o obedece a despeito de toda a sandice. O êxito da primeira edição, publicada em Basel, motivou o editor do livro a publicar a tradução latina com ilustrações. Essa edição veio a público em 1497, e grande parte das ilustrações é atribuída a Albrecht Dürer, o principal nome do Renascimento nos países germânicos.
É na esteira da difusão do poema de Sebastian Brant que Hieronimus Bosch pinta a sua Nau dos loucos, por volta de 1500. Essa pintura que pertence à coleção do Louvre é a aba esquerda do tríptico conhecido como O peregrino, cujo painel central se perdeu. Bosch provavelmente se inspirou na gravura de (pseudo) Dürer para compor essa imagem em que figuras de todo tipo se espremem em um bote minúsculo, cantando, comendo e bebendo, em que religiosos cometem vários pecados e um bufão se acomoda na Árvore do Conhecimento, que um dos passageiros leva na mão. Na água, há gente ávida pelas sobras do festim, enquanto uma figura tenta resgatar no alto do mastro um peru assado sob a bandeira do Crescente, uma alusão à tomada de Constantinopla pelos “infiéis” em 1453. Como não há ninguém ao leme,la nave va, pelo menos até que a euforia passe ou que algo desastroso suceda.
No início dos anos 2000, o norte-americano John Alexander retoma o tema em uma grande pintura que se encontra no museu Smithsonian, em Washington. O contexto em que Alexander realizou essa obra certamente não é teológico-político, como o do século XVI, mas evoca a imagem de desatino individual e coletivo num momento em que os Estados Unidos inflam a bolha financeira que, em 2007-8, culmina na pior recessão de sua história. John Alexander vê a Nau dos loucos transbordando de executivos mascarados ou metamorfoseados em animais em meio em um mar em convulsão. Nessa visão escatológica, a letalidade não é um efeito possível do desgoverno, mas algo necessário e concreto. Está ali, no alto da composição, a Morte, a passageira responsável pelo desfecho da história.
Nas três Naus, há lugar para lugar para a perdição – em todos os sentidos da palavra. Já no romance de Katherine Anne Porter A nau dos insensatos, publicado em 1962 e adaptado para o cinema em 1965 por Stanley Kramer, a perdição decorre do comportamento frívolo dos passageiros de um transatlântico que liga o México à Alemanha, numa viagem em que suas vidas se sobrepõem e se confundem. A ação se passa em 1933, no contexto da ascensão do nazismo, que é referido de maneira banal por uma das personagens principais. A trivialidade parece ser um mal menor, mas nela estão latentes os danos da ignorância, do dar as costas à razão ou do entregar-se à ganância desenfreada. Os insensatos da Nau de Porter se expõem ao desastre, mas nem tudo está perdido, basta que se disponham a pensar: “O lugar para onde você vai ainda não existe, você deve construí-lo quando chegar ao ponto certo”.