Faz escuro mas eu canto

O amazonense Thiago de Mello publicou o poema Madrugada camponesa em 1965, um ano após o golpe militar. No ano seguinte, Monsueto Menezes musicou e Nara Leão gravou os versos que cantam a resiliência e as expectativas de milhões de habitantes de um Brasil agrário que é lembrado somente quando se trata de expropriação na mais variadas e perversas formas.

A 34ª Bienal se organiza em torno de uma visão de mundo – e principalmente de Brasil – construída sobre relações de poder. Valores eurocêntricos são a base de relações de dominação que ainda perduram. As práticas revisionistas são recentes e a crítica aos valores supostamente universais estabelecidos há duzentos anos enfrenta séria resistência mesmo nos círculos acadêmicos. O propósito banir de vez valores suprematistas contemporâneos à colonização é um sonho muito distante, talvez inexequível.

Participam da bienal 91, em proporção de gênero equilibrada. Esses artistas discutem relações de poder. Quase todos estão vivos e ativos, muitos estão ligados a povos indígenas por nascimento ou convívio, muitos são afrodescendentes; artistas eurodescendentes e de origem asiática são menos numerosos. Predominam os de nacionalidade brasileira que discutem relações de poder em uma perspectiva doméstica. É uma bienal brasileira feita para o público local.

Estão na mostra personalidades históricas pertencentes aos três grupos. Sua inclusão na exposição opera como premissas que norteiam a construção de relações visuais e plásticas. A curadoria dá a essas premissas o nome de “enunciados”. São âncoras que auxiliam na montagem de um quebra-cabeça difícil, porém infinitamente menos complexo do que aquele que embaralha e enrijece as relações de poder.

Uma estranha leveza emana do conjunto da exposição. Essa leveza é incompatível com a gravidade – e ambição –do tema central da bienal, ele próprio oculto sob um verso de poesia que soa quase conformista. Muito dessa leveza se deve ao projeto arquitetônico, que produz fluidez em texturas evocativas da oposição basilar: o Brasil agrário no tecido, o Brasil industrial no plástico. Bem harmonizados, esses materiais translúcidos ressaltam as qualidades formais do edifício projetado por Oscar Niemeyer num tempo em que o país apostava todas as suas fichas no futuro sem jamais ter lançado um olhar crítico ao passado.

Contribui para a sensação de leveza a redução do número de artistas em comparação com edições anteriores da bienal. Há muito espaço vago. Além de menos artistas, as obras estão menores e são, na maior parte, bidimensionais. Um café foi instalado no meio do segundo piso, o que encoraja o visitante a uma pausa, por certo bem vinda, mas questionável do ponto de vista sanitário. 

Nesse espaço expositivo fluido, quase franciscano, as obras são apresentadas em contextos dialógicos diversos, favorecendo o contato com a poética dos artistas, ainda que as afinidades evidenciadas sejam mais formais do que conceituais.

A maior conquista desta edição da bienal é a sua extensão por espaços além do parque Ibirapuera. A parceria com outras instituições culturais possibilita a realização de exposições individuais de participantes que têm longa trajetória artística e pouca visibilidade. São nomes de peso como os do chileno Alfredo Jaar, em cartaz no Sesc SP, de Pierre Verger, no Instituto Tomie Ohtake, e de Regina Silveira, no MAC-USP

De uma bienal se espera mais intensidade, sobretudo neste cenário tenebroso e incerto. Relações de poder, em especial as inter-raciais, requerem uma abordagem contundente, não uma referência amena. A impressão geral é que temas urgentes no Brasil e no mundo – sim, existe um mundo; sim, a bienal é internacional – são tangenciados de maneira anódina e estão na exposição somente por se incluírem na agenda revisionista dos países desenvolvidos. 

Mais uma vez, o público vai ter que se contentar com pouco.  

 

Serviço

34ª Bienal Internacional de São Paulo

Faz escuro mas eu canto

Curadoria: Jacopo Crivelli Visconti, Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi, Ruth Estévez

De 4 de setembro a 5 de dezembro

Entrada gratuita. Obrigatória a apresentação do cartão de vacinação. Confira os horários no site

Magnólia Costa