Uma exposição, uma rede, muitos amigos
A expectativa é irmã da decepção. São gêmeas que se expressam de maneira complementar e com a mesma intensidade. A decepção se dá em razão direta da expectativa. A satisfação acontece em razão inversa, já que é condicionada pela surpresa. Quanto menos se espera de uma coisa, mais ela surpreende, e a surpresa pode ser positiva.
Essa máxima pode ser aplicada a quase tudo na vida, mas tem suas peculiaridades quando o assunto é arte, principalmente quando se trata de eventos cultuados como a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel. É quase impossível não alimentar expectativas em relação a eles. A Documenta é campeã imbatível de expectativas. São cinco anos de preparação, três meses de exibição e sabe-se lá quantos milhares de comentários. Produzida durante a pandemia e, por isso, inaugurada num contexto de alta expectativa, a 15ª edição da Documenta fez jus à máxima. Decepcionou imensamente o público e a crítica, mas talvez tenha surpreendido de maneira positiva quem não esperara nada dela.
A Documenta 15 foi realizada sob a curadoria do coletivo indonésio ruangrupa e esteve em cartaz entre junho e setembro de 2022. ruangrupa – escreve-se com letras minúsculas – existe há mais de vinte anos e está inserido no circuito global das artes há pelo menos dez. Esteve no Brasil em 2014 como participante da 31ª Bienal. Nessa ocasião, como não havia expectativa, não decepcionou, mas também não surpreendeu. Pelo contrário: sua presença foi tão discreta que passou desapercebida do público e da crítica, mas não foi ignorada por artistas.
ruangrupa faz arte relacional e colaborativa. O coletivo se insere em dinâmicas sociais preexistentes. Atua em sua cidade de origem, Jacarta, e em outras mediante convite, como aconteceu em São Paulo. Sua ação consiste em promover eventos de caráter igualmente coletivo, como apresentações musicais ou educativas, por exemplo. Isso implica produzir e interferir em eventos comunitários, práticas que servem à consecução do projeto de construir uma rede internacional de artistas.
Foi essa, precisamente, a proposta curatorial de ruangrupa para a Documenta 15. O coletivo chamou dezoito coletivos, a maioria do Sudeste Asiático e da Oceania, uns poucos da África e da Europa, entre os quais ZK-U – Center for Arts and Urbanistics, sediado em Londres e o mais poderoso agente internacional de sua rede. Os coletivos participaram da exposição não só como artistas ou propositores de atividades, mas como co-curadores que, por sua vez, estenderam o convite a outros artistas e grupos de colaboradores.
Essa grande rede urdida por ruangrupa foi tecida organicamente em torno de uma imagem, lumbung. A palavra bahasa significa um tipo de silo destinado ao armazenamento do excedente da colheita, de onde membros de uma comunidade podem retirar o necessário à sua sobrevivência em situações específicas. Metaforicamente, lumbung indica que a partilha tem como pressuposto o trabalho coletivo e que o espírito comunitário antecede e se sobrepõe às ações individuais.
Deslocado do contexto aldeão malaio-polinésio para o maior evento artístico do mundo, lumbung ganha o status de conceito. Como tal, deveria nortear as ações da massa anônima de artistas convidados direta ou indiretamente a participar da exposição. Como conceito, lumbung é referido como uma “prática concreta” que se aplica a rádio, editora, cinema, gráfica, galeria, (cripto)moeda, festa, histórias. Durante três meses, para os artistas da Documenta, tudo em Kassel foi lumbung, exatamente como um dia, cem anos atrás, tudo foi dadá para um grupo internacional de artistas refugiados em Zurique.
lumbung, essa palavra-para-tudo grafada em minúsculas, designa um conceito inapreensível para o público, que é a razão de ser de qualquer exposição de arte. As obras exibidas nos espaços expositivos especializados (principalmente o Fridericianum, o Documenta Halle e o Stadtmuseum) e como nos adaptados (o Hübner Areal, o Hallenbad Ost, o Karlwiese etc.) mostram que os artistas também não sabem o que lumbung significa. Nada ali remete a ações de armazenamento e compartilhamento, nem de bens, nem de práticas, e isso tanto sentido literal como no figurado. Não há o que subtrair de algo que nunca foi acumulado. E a grande maioria das obras não evoca nenhum tipo de acumulação, nem de conhecimento.
O que se vê, então, nos espaços expositivos? Faixas, cartazes, diagramas, algumas instalações, oficinas improvisadas, uma gráfica em atividade, uma pista de skate, uma creche, uma composteira. Também têm desenhos, assemblages, coleções de objetos artesanais, projeções de arquivos digitalizados, um pouco de videoarte. De vez em quando acontece uma “ativação do espaço”, uma oportunidade para o público conversar com os integrantes de um coletivo ou convidados. Para assistir a uma “ativação”, o público só precisa pesquisar a agenda de eventos e comparecer. Os espaços são variados. Pode ser uma escola pública no meio do parque, uma passagem subterrânea, uma boate ou um programa na rádio lumbung. Muitas “ativações” estão fora da agenda por serem restritas a convidados. O acesso a outras – a maioria – é pago. Para vivenciar lumbung plenamente, é recomendável ficar em Kassel por três meses e ficar amigo dos artistas para ser chamado para os eventos.
Nada contra as “ativações”, não fossem elas destinadas aos artistas, cujo número provavelmente é desconhecido pela curadoria coletiva ruangrupa e pelo conselho artístico da Documenta 15. A rede internacional que se formou em torno da exposição é um fim em si mesmo. Se o valor dos ingressos não contribuísse para compor o orçamento, o público seria totalmente dispensável. A Documenta 15 é uma exposição feita por amigos e dedicada a amigos. É uma festa, um clube onde se entra por indicação. Mas também é um linkedin – assim, em minúsculas –onde os artistas exibem competências para seus pares, competências que podem chamar a atenção de agentes poderosos no circuito pós-Documenta.
Alguns perfis se sobressaem nesse linkedin. É o caso do australiano Richard Bell, um artista inserido no mercado com um discurso decolonial legitimado pelo pertencimento à cultura aborígene. Bell apresenta um trabalho conceitual na fachada do Friedricianum e um conjunto de pinturas no interior do edifício. Outro caso é o da polonesa Malgorzata Mirga-Tas, artista cigana que participa da exposição como convidada do coletivo Roma, articulado em 2014 na Hungria autocrática de Viktor Orbán como proposta off-bienal de Budapeste. (Esclarecendo: roma, ou romani, é a maneira como o povo cigano refere a si mesmo.) Os trabalhos em tecido de Mirga-Tas são feitos em equipe com ciganas polonesas e têm forte respaldo institucional, como prova a impressionante ocupação do pavilhão da Polônia na Bienal de Veneza deste ano. É maravilhoso que as propostas de Mirga-Tas e Bell estejam inseridas no sistema artístico global e que sua inclusão na Documenta 15 possa torná-las muito mais conhecidas e apreciadas. Elas são um ponto alto da exposição, assim como os trabalhos dos artistas do africano Wajukuu Art Project.
Mas voltando às “competências”, é curioso que estejam atreladas à galeria lumbung, que vem a própria Documenta 15, onde tudo está à venda. ruangrupa e os dezoito coletivos fizeram da Documenta 15 um sistema artístico-mercadológico autônomo, onde a comercialização de obras se dá sem intermediação, representação ou tributação. Para esse fim, foi criada a moeda lumbung, na verdade uma criptomoeda chamada beecoin, em alusão à vida comunitária e interdependente das abelhas.
Nada disso está em operação. Ou parece não estar. Não são disponibilizadas ao público as informações necessárias à sua inserção no “ecossistema” – quando o assunto é vender, o clichê startupeiro é corrente no vocabulário lumbung. Do mundo empresarial, esqueceram a competência principal: um canal eficiente de vendas. Mas talvez as leis fiscais alemãs tenham sido impedimentos à plena realização projeto, um inconveniente que prova, na perspectiva dos artistas, prova que o mundo não está preparado para lumbung. Mas a qual lumbung se referem? O da prática tradicional malaio-polinesia que está fora do sistema capitalista? Ou o do discurso artístico anticapitalista que, romanticamente, seria o prenúncio do neocapitalismo?
Entre acusações, reivindicações, denúncias, polêmicas e uma profusão de coisas descartáveis e mal (des)arranjadas, o público constata o óbvio: que o mundo é um caos e que o fim da fronteira entre arte e vida, celebrado pela crítica há mais de cinquenta anos, afeta negativamente a capacidade do artista de se comunicar. Na cruzada pelo fim da representação, os artistas da Documenta 15 martelam clichês de discursos baratos de conscientização que inundam as redes sociais. Seu ativismo digital é apenas o meio utilizado na construção da própria “comunidade” – outro clichê.
Como instituição, a Documenta 15 assumiu o papel de impulsionadora de artistas e redes. Aliás, mega impulsionadora. Investiu 46 milhões de euros na promoção de encontros cirandeiros cuja finalidade é fortalecer um networking de artistas que falam para si mesmos.
A “comunidade” se deu bem e o público se deu mal. Duas perguntas pairam no ar: será que a Documenta sobreviverá como a instituição experimental que se propôs a ser – e foi – há quase setenta anos, quando foi fundada? Será que vai se acomodar no papel de promotora de divagações herméticas e difusora de clichês? Uma dica: se exposição é para o público ver, é bom começar a pensar nela a partir da perspectiva do público. Onde não há expectativa não há decepção, só surpresa. Esperamos que seja positiva.