Fabricio Lopez: Sobre conchas e corações

Vista de A concha eloquente do coração, 2013, individual de Fabricio Lopez no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo. Foto: Everton Ballardin

Vista de A concha eloquente do coração, 2013, individual de Fabricio Lopez no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo. Foto: Everton Ballardin

Depois de perambular pela casa buscando o melhor lugar para dar minhas aulas online, acabei elegendo uma mesa pequena, alta e sem graça no meio da sala. Meus alunos se acostumaram a ver a minha imagem num cenário formado por uma de tela TV, uma planta, um espelho e parte de uma grande pintura abstrata em tons de magenta e verde. Muita gente pergunta quem é o autor da pintura. A resposta é: Fabricio Lopez.

            Essa pintura sem título é uma das favoritas da minha coleção. Eu me encantei por ela quando a vi na exposição de graduação do Fabricio na Faap em 2000, tempo em que eu ensinava crítica de arte. Sorte minha ter comprado a pintura logo depois da formatura do Fabricio. É muito bom olhar para ela todos os dias. Não me canso de observá-la. Arte boa nunca se esgota. Ela sempre diz algo que a gente não notou antes.

            Tenho outros trabalhos do Fabricio, duas xilogravuras. A xilo é o meio com que o Fabricio mais se identifica. Ele gosta de pegar a goiva, ir para cima da chapa de madeira e arrancar dela tudo que for preciso até deixar gravada a imagem de algo significativo para ele. Quando digo “ir para cima”, estou sendo literal. Como essas chapas são grandes, gravá-las é uma tarefa que envolve o corpo todo, não só as mãos. O Fabricio sai cavando essas superfícies sem trégua, trazendo à tona o negativo de imagens que posteriormente se revelam impressas em grandes folhas de papel, combinadas e sobrepostas de maneiras diferentes, com cores diferentes, como camadas de lembranças. Cada gravura do Fabricio é um original que resulta de um processo que subverte o propósito dessa técnica inventada para reprodução do mesmo ao infinito.

            As gravuras do Fabricio são um convite para explorar palimpsestos de um imaginário formado à beira mar. Ele é natural de Santos-SP, cidade onde viveu e produziu por quase toda a vida. Memórias da cidade, da própria vivência, do contato diário com o mar. Tudo isso recorrendo numa combinatória de lembranças gravadas na madeira, que retornam em gravuras de grande formato fixadas na parede com uma técnica semelhante à do lambe-lambe, mas dotadas da virtude de serem transferíveis para onde o coração mandar.

            É no coração que se acomodam as conchas em cujas cavidades se ouve o marulho das ondas e os ecos da memória, do sonho, do desejo. As xilos do Fabricio o têm levado a muitos lugares do mundo, em residências e exposições. Pude visitar algumas delas. A que mais me impressionou foi A concha eloquente do coração, realizada em 2013 no Centro Universitário Maria Antonia. Ainda sinto o impacto de entrar naquela sala gelada e me perceber cercada de grandes placas de madeira gravadas e entintadas de preto, dispostas em uma faixa contínua como frames de um filme editado da maneira mais seca possível, uma colagem bruta de imagens desconexas em que planos próximos se alternam com distantes numa atmosfera expressionista impregnada de elementos tropicais. Quem conhece as gravuras do velho Goeldi pode ter uma pálida ideia das imagens soturnas que o Fabricio produz em suas matrizes enormes. Ali estão o galpão abandonado, a traineira encalhada no banco de areia, as mariposas libertas, o raio-X contrabandeado para a rua. Tudo muito urbano e familiar, tudo muito litorâneo e assombroso.

            Outra exposição memorável do Fabricio aconteceu na galeria Marília Razuk algum tempo depois. Era uma exposição ancorada em desenhos de dimensões tão grandes que ocupavam uma sala inteira. Não me recordo da data exata, mas isso não é muito relevante quando o que interessa é o que nos toca, coisas que aparecem, desaparecem e tornam a se manifestar quando menos esperamos. É mais ou menos assim que o Fabricio compõe suas gravuras, imprimindo e reimprimindo imagens que voltam à memória (e aos olhos) associadas a elementos que passam despercebidos de tão presentes que são. 

            Fazia tempo que eu queria escrever sobre o trabalho do Fabricio. Não sei por que isso não aconteceu antes. Se as coisas têm um tempo próprio, o tempo de escrever sobre essa produção que admiro se apresentou junto com uma ideia de convidar artistas para mostrar suas obras no meu site. A receptividade do Fabricio me deu uma alegria enorme. Ele aceitou o convite na hora! A minha ideia foi repentina, precisa de amadurecimento, mas estou decidida a encontrar o jeito certo de fazer deste blog um espaço de encontro do artista com o público. Afinal, crítica de arte existe para potencializar esse encontro. Meu querido Diderot vislumbrou isso há 250 anos. Vamos colocar em prática a lição que ele deixou.

            Bem vindo, Fabricio! Obrigada por compartilhar a sua arte conosco.

 

Vista de A concha eloquente do coração, 2013, individual de Fabricio Lopez no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo. Foto: Everton Ballardin

Vista de A concha eloquente do coração, 2013, individual de Fabricio Lopez no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo. Foto: Everton Ballardin