Magnólia Costa

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Sobre referentes e referidos

Vista de Takapau (2022), do coletivo Mataaho, no Arsenale, 60 Bienal de Veneza. Foto: divulgação

O coletivo Claire Fontaine deu visibilidade internacional ao grupo anarquista turinês Stranieri Ovunque com a obra-expressão Foreigners everywhere, que desde 2004 se materializa nas salas dos museus em traduções para diversas línguas, escrita em letreiros de néon. Há vinte anos, talvez ninguém imaginasse que a obra haveria de prosperar como título de exposição. Isso ocorreu pela primeira vez em 2009, no 31º Panorama da Arte Brasileira do MAM São Paulo, quando foi traduzida para o tupi antigo como Mamõyaguara opá mamo pupé. Este ano, 2024, repercutiu globalmente na tradução para o italiano que dá título à 60ª Bienal de Veneza. Ambas as exposições têm o mesmo curador, o brasileiro Adriano Pedrosa, atual diretor artístico do MASP.

Muita coisa muda com o tempo. Opiniões, pontos de vista e valores oscilam ao sabor de circunstâncias, informações e do amadurecimento pessoal. Conceitos, porém, estão sujeitos ao rigor da lógica, são menos suscetíveis a oscilações. Há conceitos diferentes para o mesmo objeto, segundo o contexto, a época ou o sistema de pensamento, mas é raro que um conceito deixe de referir um objeto para referir outro. Também é raro que se esvazie enquanto tal, de maneira a não referir nada além de si mesmo. Embora incomum, isso aconteceu. Nos quinze anos que separam Mamõyaguara opá mamo pupé e Stranieri ovunque, o conceito de estrangeiro foi esvaziado a ponto de não referir ideia nenhuma. Foi reduzido a um expediente de preenchimento do vazio discursivo.

Se a definição é a expressão linguística de um conceito, convém lembrar o que define o estrangeiro (foreigner, straniero ou mamõ). Estrangeiro, forasteiro, é quem vem de fora, de outro povo, região ou país. É o outro (o referido) em relação a mim (o referente). Isso possibilita entender a expressão “estrangeiros em todos os lugares” como constatação que se investe de sentido à medida que é inserida em um contexto sociolinguístico. É isso que valida conceitualmente Foreigners everywhere como obra de arte e a distingue da descrição factual.

Quando Foreigners everywhere foi tomada de empréstimo a Claire Fontaine para intitular o 31º Panorama, a expressão singularizou-se na afirmação de um referente (o eu, o brasileiro) representado pelo tupi antigo, uma língua morta. Traduzida para o idioma de um povo que habitava a costa brasileira no início da colonização, a expressão-título referia o outro que provinha de além-mar e que, com o tempo, se tornou referente em um processo de dominação longo e violento. Ao propor uma exposição de arte brasileira feita por artistas estrangeiros, a curadoria retoma essa ideia mostrando como a referenciação converte o referido em referente. A quase totalidade das obras expostas no 31º Panorama referenciava o modernismo brasileiro dos anos 1950 e 1960, aludindo a obras arquitetônicas, artísticas e musicais de ampla circulação no exterior. A exposição foi recebida com desdém tanto pela crítica como pelos artistas locais, mas proporcionou ao público a oportunidade de se perceber brasileiro pelo olhar do estrangeiro – ou melhor, de se perceber segundo uma brasilidade que hoje seria considerada culta, quando não elitista. O Panorama propôs um jogo de reflexos em que o outro se fundia no eu, e o eu, no outro. Ponto para a curadoria.

Quinze anos depois, o mesmo curador elege a obra de Claire Fontaine como título de exposição, desta vez internacional. A exposição é Bienal de Veneza, criada em 1895 como palco de manifestações diplomáticas de soft power, missão que vem cumprindo até hoje. Desde que a bienal existe, há estrangeiros em todos os lugares, e eles são artistas, curadores e visitantes. Stranieri ovunque é um título óbvio, para dizer o mínimo.

Mas o óbvio pode trazer desafios. No caso de uma bienal internacional, os desafios são numerosos. Para começar, é preciso pensar a pluralidade das relações entre referentes e referidos em contextos altamente instáveis como os da arte contemporânea. Também é preciso mapear a produção artística em várias regiões do globo e adentrar o campo minado das relações internacionais. Como são tarefas ambiciosas demais para serem cumpridas em dois anos, há que se fazer escolhas.

Primeira escolha, a mais importante: restringir o mapeamento da produção artística. Mapear a arte do hemisfério Sul é uma escolha conveniente em vários aspectos. O Sul é menos populoso, pouco influente no cenário geopolítico e a maioria dos países têm passado colonial, o que possibilita abordar a pauta decolonial de maneira genérica. De quebra, permite dar destaque à produção brasileira, não a que pulsa nos circuitos alternativos, mas aquela velha conhecida, institucionalizada e chancelada por museus. Inclusive, pode-se evidenciar isso com um toque de nacionalismo, exibindo-a nos displays que Lina Bardi desenhou para o MASP.

A arte brasileira ocupa o centro do espaço expositivo da bienal de Veneza e, simbolicamente, o da suposta discussão sobre estrangeiros que ela propõe. Nessa ficção curatorial, ela é apresentada como (auto) referência histórica (sic). O “Núcleo histórico” da exposição é majoritariamente formado de pinturas modernistas brasileiras executadas por estrangeiros. É fato que Volpi e Brecheret não nasceram no Brasil, mas seriam ele mais estrangeiros do que nativos como Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari? Em um “Núcleo histórico”, não deveria haver artistas de povos originários? Ou de artistas descendentes de populações escravizadas, como o Aleijadinho?

Essas questões não valem só para os “históricos” – numerosos demais para uma exposição que é, sempre foi e sempre será de arte contemporânea – mas se estende aos artistas em atividade. Tome-se o exemplo de Beatriz Milhazes, providencialmente inserida na mostra com uma exposição solo no pavilhão de Artes Aplicadas (sic). Tome-se o exemplo de Dalton Paula ou dos integrantes do coletivo MAHKU. O que os torna estrangeiros? O fato de estarem em Veneza? Aliás, o que torna estrangeiros os 322 artistas que participam desta bienal?

É aqui que o óbvio se complica. Como pensar o referido sem o referente é um disparate, a solução é eliminar o referido. Basta inventar um novo conceito para “estrangeiro”. É uma solução mágica. Instantaneamente, estrangeiro deixa de ser o que vem de fora, o outro em relação a mim, e se torna um afeto do eu, o meu sentimento em relação ao Outro. O sentimento generaliza o Outro em patriarcado, colonialismo, racismo, homofobia e transfobia, mas não, ironicamente, em xenofobia. Essa manobra faz de Stranieri ovunque uma exposição de referentes. Ou antes, de autorreferentes. Obras e artistas referem a si mesmos como sujeitos identificados com e por meio de sentimentos em relação ao Outro transcendentalizado.

Acontece de tudo nessa Babel de autorreferentes. As obras expostas no Arsenale e no pavilhão central dos Giardini se confundem como num caleidoscópio em que imagens são reduzidas a fragmentos de luz. Tudo tem o mesmo peso, seja a obra que resulta de décadas de trabalho, seja o desenho ocasional traçado numa folha de sulfite. A predominância do formato bidimensional e, em certas salas, a distribuição das obras em arranjos constelares contribui para a confusão visual, reforçando o efeito equalizador que só o conhecimento do valor monetário das obras é capaz de desfazer. Neste sentido, nada é mais parecido com uma feira de arte.

Bordados, trançados e tapeçarias estão muito presentes na bienal. Instalada na entrada do Arsenale, Takapau (2022), uma rede de tiras de poliéster e aço trançada pelas artistas maori do coletivo Mataaho, anuncia ao público que a produção contemporânea do Sul global se dirige por técnicas tradicionais e pela artesania, embora se renda ocasionalmente ao velho óleo sobre tela do colonizador. Ao enfatizar a conexão do autoreferente com saberes tradicionais, o recorte curatorial reforça esterótipos, sugerindo que o autorreferente ignora, despreza ou resiste a novas tecnologias. Chama atenção a escassez de videoinstalações, obras digitais, multissensoriais ou que fazem uso de inteligência artificial. Será que os “estrangeiros” do Sul só se expressam pelos meios artísticos de suas culturas originárias? Ou será que não existe tecnologia nessa região do mundo?

Há obras interessantes? Certamente que há. Uma delas é um vídeo, um dos poucos exibidos na bienal. We were here: history of black africans in renaissance Europe (2024), do afro-italiano Fred Kuwornu, aborda a relação referente-referido numa chave histórica e artística. Em 53 minutos, o vídeo comunica o que a exposição como um todo evita afirmar: que “estrangeiro” é o outro que exploro, subjugo, oculto, extermino e assimilo.

O melhor na 60ª Bienal de Veneza não está nos pavilhões centrais, e sim nas representações nacionais. Como de praxe, alguns países adotam o tema da exposição principal, outros não. Nesta edição, os países colonizadores com pretensões imperialistas abraçaram o mote “estrangeiros em todos os lugares” e o trataram com a objetividade dos que impõem as regras do jogo ao resto do mundo. Nada é mais objetivo do que reconhecer o passado predador e declarar a superação dele na convocação do estrangeiro como seu representante. É o que se vê no solo do ganense-britânico John Akonfrah no pavilhão da Grã-Bretanha e no de Jeffrey Gibson, artista queer do povo cherokee, no pavilhão dos Estados Unidos.

Em sua representação nacional, o Brasil abraça o mote da bienal e mostra obras de Glicéria Tupinambá na curadoria de Denilson Baniwa, Arissana Pataxó e Gustavo Caboco, todos indígenas. Eles vêm de povos diferentes, mas apresentam a mesma (triste) realidade: ser estrangeiro em sua própria terra.